O livro que não escrevi
O livro que não escrevi me visita. Sigo pela rua com ele e seus elementos me fazem olhar ao lado... Quem sabe descubro o espaço onde a história se constrói? Rio de Janeiro, sem dúvida, com seus milhões de carros querendo dobrar, no mesmo instante, a mesma esquina, com seu céu azul, mesmo longe do mar, cartão postal de uma cidade reconhecida pela UNESCO, mas que não seria o cenário de minha história. Um subúrbio, zona norte, lugar quente e abafado, um Rio de Janeiro que turista não conhece. Esse sim seria o espaço ! Elemento dois: o que acontece nesta cidade? A vida inteira que poderia ter sido e que não foi, como em Pneumotórax, Bandeira? Ou a vida que pode ser ainda? O que aconteceu ou acontecerá nessa vida? Livro autobiográfico não. Aventuras? Quais vividas seriam material para a ficção? Nada resolvido. Talvez quem esteja na história me ajude a decidir. Quem? Quens? Protagonista: uma mulher cinquentona, com muita vontade de viver, flanando pela cidade....O que acontece agora? Um assalto? Não, esse é um clichê desta cidade, recorrência negativa que diz pouco sobre ela. Encontra um olhar que a faz estremecer? Ouve uma voz do passado? Se lança em um novo amor? Rememora os antigos? A mulher...a mulher não está só, não quer ficar. Por isso seu olhar perscruta o entorno, em busca de outro olhar, que a ajude a mergulhar numa outra vida, diferente da solidão em que se afundou, e que despreza. Mulher boba, sonhadora..Mais de cinquenta anos na cara e o coração de menina, sonhando ainda com um amor, um outro amor, que provavelmente nunca chegará. Mas ela caminha. Aquele chão lhe é familiar. Foi ali que seus lábios conheceram o primeiro beijo. Ali, naquela calçada, encontrou, um dia, o namoradinho que foi o primeiro amor...Sorriso. Sim, ela sorri. Ainda bem que há boas lembranças. Aliás, muitas. Ela não pode negar que amou muito . Foi amada também, no passado. Mas afinal, quem irá compartilhar as cenas com ela? Um homem? Um homem...que homem? Alto? Baixo? Novo? Grisalho? E seus olhos, que cor refletirão? O azul, o verde ou o castanho, como os dela, que sempre quis ter olhos verdes...Teus olhos castanhos, de encantos tamanhos, são pecados meus...Vozes da infância a embalar, no consolo maternal...Olhos verdes são traição, que nada valem pra mim...Olhos bons de coração, os teus, castanhos leais...Que viagem, hein? O passado... Qual o tempo em que essa história acontece? Determinar ano? Deixar que o tempo se marque pela presença dos viadutos, dos inúmeros carros, da confusão característica de um Rio contemporâneo, num início do século XXI? O passado... quando foi esse passado? Trinta, quarenta anos atrás...Tudo de importante na vida da mulher parece ter acontecido há tempo demais para que se possa precisar. Um bom tempo passou. Mas ela ainda está viva e por isso caminha pelas ruas do Rio, sozinha, é verdade, mas espera que não seja por muito tempo. Seu coadjuvante há de chegar... E quem vai contar essa história? Eu, a autora, devo ficar de fora, segundo a Teoria Literária. Nada de identificação com o autor! O narrador é personagem criado, assim como todos os outros... Muito bem! Narrativa em primeira pessoa? Seria confessional demais! Depois de Dom Casmurro, nenhuma outra narrativa em primeira pessoa foi interessante. Que tal um narrador intrometido, que não é personagem, mas conhece tudo o que se passa no interior dessa mulher? Ele até pode dar palpites... É isso! Está na moda! Um dos prêmios mais importantes do país saiu para um livro com um narrador intrometido. Não que esteja pensando num prêmio para esse livro, que ainda nem foi escrito, mas a ideia me agrada. Resolvido: narrador extradiegético, intrometido . Hahaha...conheço alguém que diria que este texto é uma aula de teoria literária...Ledo engano! É só um livro que ainda não existe se fazendo, são os fios de um tecido que poderia me envolver... Pensar de novo no narrador. O que ele diria a ela? De que forma se intrometeria? Daria conselhos para que ela virasse a esquina, sem olhar para trás, erguesse a cabeça, sorrisse...isso não! Parece clichê demais: sorria, levante a cabeça, siga em frente...que narrador piegas...Talvez opinasse sobre sua silhueta, que se delineia no espelho..fiu fiu...está no ponto, hein? Talvez refletisse sobre os planos de viagem à Europa, talvez até sugerisse um encontro com um italiano charmoso...mama mia... Narrador homem ou mulher? Li um livro em que o narrador era uma narradora...muito bom...Uma narradora entenderia melhor essa mulher, que passa, procura novos caminhos, retorna aos antigos e torna a sair... Por falar em voltar...a narrativa seria em flashback, já se vê, mas o narrador intrometido poderia adiantar, em flashfoward, que ela nem imagina o que lhe acontecerá na viagem...O que será que acontecerá na viagem? Também eu fico curiosa...me dá vontade de esmiuçar a mente dessa narradora, para ver se consigo adivinhar...nada... Muito bem... quando as peripécias começarão? O que as desencadeará? Está ficando difícil conviver com este livro. Ele me toma toda, me tira a tranquilidade, faz com que eu queira estar perto dele, dentro dele, o tempo todo...Não sei, não sei quando as peripécias ocorrerão..meu Deus, não sei nem mesmo por que ocorrerão.... deixe-me pensar... A mulher, a mulher que caminhava resolve que vai seguir só. O trabalho é um ótimo companheiro: workaholic ..isso mesmo, só o trabalho ocupando sua vida, todas as horas dos seus sete dias de suas semanas...assim ia caminhando, até que....Um dia, encontra um endereço na Internet, desses sites de relacionamento. Como a solidão era tanta, resolve entrar, só por brincadeira, para passar o tempo e amenizar a solidão e o silêncio. Eis que faz contato com alguém. Com um homem, um belo, enorme e charmoso homem... não dá para ver a cor de seus olhos pela tela, mas ela crê que sejam verdes...As conversas se prolongam, noite a dentro, até altas horas da madrugada. Os dias passam a ser longos, na expectativa da hora do encontro virtual, que se repete noite após noite... Nunca esteve com ele tete a tete, mas seus pensamentos são tomados por essa presença masculina, que lhe arrepia o corpo, a faz acariciar sua pele, imaginando outras mãos a percorre-lhe o corpo... Foi assim que a encontramos, percorrendo as ruas do Rio de Janeiro, rindo aquele riso misterioso... De repente.....pronto! achei a peripécia....de repente, ela toma consciência de que aquele homem nunca se fará presente, de que nunca deixará de ser um IP, um endereço online, a piscar-lhe nas noites solitárias, depois de, sabe Deus o que ou quem encontrar... De repente ela percebe que aquele afeto, que se construiu pelas luzes e pelas palavras, nunca se concretizará em carne, em beijos, em afagos, tão necessários ao seu corpo inerte... Ela percebe, com a clareza que lhe é peculiar- esta é uma mulher inteligente, apesar de romântica, não esqueçamos...- que aquela imagem que se havia transformado em presença está apenas repetindo elogios vazios; que provavelmente deseja, tão somente, um encontro qualquer, um sexo qualquer, e que ela, como uma menina tola, estava se deixando levar por sua lábia. As ausências começaram a alertá-la, mas o silêncio de luzes piscando em seu quarto e a percepção de luzes piscando em outro quarto, lhe trouxeram a certeza. Epifania fatal.... a vida andava boa, àquela altura.... De volta às ruas do Rio de Janeiro. O céu parece acompanhar sua tristeza...cinza, cinza, cinza...Volta pra casa, pra fugir da chuva iminente... A luz a piscar, insistentemente no computador, já não faz sentido. Sabe que palavras virão, sabe que carícias irá desejar, sabe até que sorriso ele exibirá pelo MSN, encostado no espaldar de sua larga cama, sem camisa... Com um clic, ela sai do site, com outro, desliga o MSN- por que não sai logo do ar?- com outro clic, desliga o computador e fecha a tampa. Para trás mais um ...quase amor..para trás, mais uma lembrança, mais um aprendizado. Daqui a seis meses estará num avião, rumo à Itália- é preciso aprender algumas palavras para sobrevivência- e tudo isso ficará esquecido, apenas uma sensação, nada mais. A torre de Pizza, Veneza, as obras de Miguelangelo....O travesseiro a espera. Encosta a cabeça, fecha os olhos e torce para não sonhar com aquele sorriso, com aquela luz, com aquele afago possível... Parece que está bom... uma mulher moderna, afinal, está sujeita às novas tecnologias, aos amores virtuais, assim como esta mulher. É hora de me despedir dela. O livro está delineado, só me falta desenvolver essas ideias, que me perseguem faz tempo... Um vazio me tomou agora...a falta daquela mulher que soube amar, que soube esperar aquela luz, como uma adolescente, essa, uma das muitas mulheres que me habitam, e que por hora se despede...
1 Comentários:
Sensível, sensata, sem censura. Uma história mágica, simples, envolvente, carente, autosuficiente. Gente, parente olhando o passado e andando pra frente, em frente sempre. Bj minha musa escritora, encantadora.
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